Hoje acordei com a notícia de que os recursos do FIES foram reduzidos. Menos financiamento estudantil, menos pessoas nas universidades particulares que conseguem suprir as demandas de tantos que querem retornar aos bancos das faculdade, que precisa estudar à noite, etc.
Hoje precisei fazer um saque na agência bancária. Esqueci que em meu bairro tem caixa 24 horas e desço para o centro caótico de Ilhéus. O bairro Pontal é uma mini-Cidade e minha memória parece esquecer disto. Aquela típica dificuldade em atravessar do continente à ilha pela única e antiga ponte Lomanto Júnior. Aquela típica dificuldade de parar o carro. Pra quê carro? É tão perto em linha reta, minha memória me recorda que não tem ponte de pedestre. Fui pela rua Eustáquio Bastos, gosto de passar na frente do Ilhéus Hotel, aquele prédio amarelo pálido, esquecido nas memórias alheias; depois passo pela esquina que mais venta no mundo, o encontro do calçadão da Marques de Paranaguá com a Rua Coronel Paiva , é estranho que insistentemente passemos de saia por ali, onde o vento é insistentemente provocativo. Dia nublado em Ilhéus, aquela mistura de mormaço, quentura, abafamento.
Vinha em mim um estranho bafo de suor, de umidade ao abrir a porta do banco. Era calor humano mesmo. Adentrar a porta principal da agência bancária: um desafio. Tanta gente, tantos rostos, tanta fila. Duas máquinas quebradas, uma em manutenção, uma funcionando bem lentamente, e outra com a Fila do século que se avolumava pelas escadas de acesso e pela rua. Como única opção usei a máquina lenta. Não entendia por que uma Fila tão grande, tão imensa, bem ao meu lado.
Parada aguardando a minha vez, o que meus olhos viam logo reativada a memória: dia de pagamento dos aposentados. A máquina com a estranha fila sinuosa e apertada era a única com uma estagiária rápida e robotizada. Para quê um bom dia? Para quê um sorriso. Amos ausentes. “Navegar é preciso”, liberar os pobres, coitados, analfabetos, entristecidos, gastos pelo tempo voraz, era preciso agilizar a fila.
O modus operandi do ato era idêntico. A cena: cartão e senha na mão, alguma grunhidos.
– Vai sacar tudo?humrumm
– Próximooooooo
-Vai sacar tudo? Ahhhh
-Quanto senhor? (As mãos mostram 5 dedos)- só pode ser quinhentos reais, penso eu, mas não haviam palavras…
– Próximoooooo
E assim dezenas e centenas de pessoas, para quem a máquina é uma coisa indecifrável que guarda seu dinheiro, passarão por ali, sem um bom dia , sem um sorriso, sem orientação, sem uma única instrução do uso do cartão, sem Empoderamento.
Hoje pensei em meus clientes iletrados, tenho muito zelo e cuidado, olho primeiro a carteira de identidade, aquele carimbo “NÃO ALFABETIZADO” recai em mim de forma dolorida. Pergunto se ele já assina? Se quer a esponjinha, se tem vontade de voltar a estudar? Quando vejo aquele olhar cabisbaixo, e a frase: “eu não tenho estudo, não sei nada não doutora”. Isso me corta a Alma e vou explicando ao modo freiriano de ser e agir que cada um acumula certos conhecimentos , que o dele é muito importante, que várias habilidades que ele domina eu desconheço e que cada um destes saberes tem sua relevância. A cabeça se levanta, os olhos abrem e o sorriso aparece. Acredito que o tempo de estagiei no projeto Alfabetização Solidária junto com a mestra Yasmine Habib me forjou assim.
Hoje está difícil, como vencer as graves barreiras do analfabetismo se cada vez menos olhamos essas pessoas? Não merecem bom dia? Seus filhos não merecem bolsa de 70 reais para comer e estar na escola? Seus netos não merecem financiamento estudantil para romper este ciclo de pobreza?
Escolhi a Xilogravura de J. Borges da Bela e a Fera; esse mundo feroz do analfabetismo que precisamos enfrentar, da imbecilidade humana que não conseguimos extirpar, dos ciclos de miséria deploráveis que não conseguimos vencer. Comecei este artigo inicialmente com o título “o que não queremos ver”, ao terminá-lo depois de alguns dias de revisão, pensei que o mais importante dele não era a fila desrespeitosa do banco, a estagiária mecanicamente treinada, nem o analfabetismo, o cerne dele são essas pessoas invisíveis que não queremos ver, então ‘O’ virou “OS” QUE NÃO QUEREMOS VER, mas importante de tudo são essas pessoas.
Leia nossas outras crônicas de Ilhéus: Big Brother Passarinho
Por Jurema Cintra Barreto
advogada militante em Direito previdenciário e Direitos Humanos
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