Como é possível unir duas paixões tão distintas?
O Umbu é uma fruta tipicamente brasileira, endêmica, por que só nasce no bioma Caatinga. Eu nasci em Seabra, no coração da Chapada Diamantina e centro da Bahia. Desde criança eu ficava sonhando em chegar o mês de dezembro, não só por causa do Natal, dos presentes comerciais, mas dos presentes naturais. Dezembro é mês de umbu e de mangaba, mas, sobre as mangabeiras, serão outras escritas.
Após provar um chocolate de umbu eu senti uma vontade avassaladora de escrever, dentro de mim algo estava pujante, deixei até de ir num compromisso ambiental, por que as palavras estavam me dominando.
Voltemos a infância em Feira de Santana, onde tem umbu, mas são mais tímidos, árvores menores, tinha muito mais cajá, então eu ficava sonhando com a viagem para Seabra na casa de vovó Amélia e chegar na feira e ter aqueles umbus enormes que vinham de Oliveira dos Brejinhos ou da Prata . Quando comecei a andar por Irecê e Jussara, e, descobri a roça de tio Licínio, foi uma paixão avassaladora, cada umbuzeiro digno de batismo e tombamento. Assim como na cidade de Sabará alugam 1 pé de jabuticaba para chupar, deveriam fazer com o umbuzeiro. É tanto umbu gostoso e diferente que fico imaginando a injustiça e tristeza de bilhões de pessoas no mundo que desconhecem este alimento. Partindo desta ótica, eu sou privilegiada demais, conheço centenas de pés de umbu.
Da infância para adolescência, parece aquela passagem de tempo de novela brasileira, mas com uma marca indelével, os dentes manchados de umbu, e desgastados, cada dia os dentes frontais mais deformados e quase sem solução, doíam e muito chupar umbu e tem as técnicas ancestrais de morder o galhinho novo de umbu para a resina proteger os dentes. Fiz tudo isso e faço, mas o desgaste vem.
Nada resolveu, fui até a idade adulta sofrendo com idas ao dentista e as técnicas de chupar umbu com uma faquinha na mão viraram rotina, por que agora sou proibida de morder virulentamente o fruto, é tudo descascado com a faca afiada e colocado na boca com cautela. Andanças e andanças mil, até que me mudo para Ilhéus, para estudar direito. Aqui não tem umbu, aqui é Mata Atlântica e Cabruca cheinha de cacau. Outro fruto entra em minha vida. Mas, na Bahia, tem a história dos ambulantes, então chega umbu nos carrinhos de mão, nas ruas do centro, na feira livre, mas nada se compara a chupar no pé, com aquela casca verde crocante, é uma sensação inigualável, única, um deleite aos ouvidos o “croc croc”, um sabor irresistível do cítrico e do açúcar. Chupar umbu no pé deveria ser atração turística com cobrança de ingresso e ticket.
Belo dia, descubro que meu pai escreveu um cordel com o título : “SE UMBUZEIRO FALASSE”, é uma obra prima da escrita e da poesia popular, Marialvo é geógrafo e chapadeiro de Ipupiara, amante da caatinga e conservacionista. Eu lia o texto e ia me derretendo em lágrimas, sonho em poder musicar e transformar numa peça de teatro, ou numa opereta, é uma obra prima da sociologia rural, das disputas de terra e injustiças sociais no campo e da biologia da conservação, só quem domina muito a língua e o tema é capaz de escrever com tamanha maestria. Sonho que este poema seja conhecido por todo o mundo.
Então a paixão pelo umbu, foi crescendo, pelo prazer do paladar, pela escrita de meu pai, pela importância da árvores no sertão e na ecologia.
E os dentes sofrendo, sofrendo ao ponto de todas as fotos de viagem ficarem sempre com aquele dentinho manchado, de tanto desgaste natural com o cítrico da fruta.
Só que o umbu começou a ter concorrência, a mudança para estudar nas terras grapiúnas de Ilhéus foi ficando mais longa, pós graduação, trabalho, casa própria, casamento, envolvimento comunitário e Cacau entrou definitivamente em minha vida. As viagens para Seabra e Feira de Santana ficaram menos constantes e o fruto ouro foi entrando sorrateiramente no meu cotidiano. É suco de cacau, é mel de cacau, é licor de cacau, é geleia. Mas, o chocolate fino foi bem devagar, a primeira vez que provei foi em 2004 na eleição para reitoria a UESC, o marido de professora Adélia, então candidata, trazia de lanche pra gente, uns bombons maravilhosos. Fausto nem podia imaginar o que fez conosco, despertou sensações únicas, momentos sensoriais impressionantes.
Mas não era fácil de achar e tudo ainda era muito novo neste universo em Ilhéus, a pobreza em face da crise econômica assolava as propriedades e fazendas. Até que um dia fui para um evento regional que se chama Festival do Chocolate, de stand em stand fui conhecendo um universo mágico e daí em diante não parei mais de provar essas “barrinhas”. São aventuras semanais de experimentação, até que na loja da Dengo onde vende multimarcas, me deparei com uma barrinha de Chocolate 70% e Umbu. A curiosidade foi imediata, oxe? como assim ? como pode ? quem faz ? quem criou ? quanto é ? como é ? da onde vem ? cheguei em casa e fiquei olhando a embalagem até decifrar este mistério, e bote oxe? melhor oxe oxe oxe, a gente repete 3três vezes.
O nome da barra é Mission Chocolate. Não sei nada sobre a marca e os idealizadores e isso que me encanta, escrever no escuro, não vi nada nas redes sociais, não li, não estou sugestionada, posso falar com pureza.
Eu já tinha algumas preferidas e agora aumentou a listinha das prioridades. Assim como Umbu é uma espécie funcional de grande relevância ecológica, esta barrinha ganhou grande relevância no meu universo particular de deleite.
São quadrados de geleia de umbu milimetricamente adicionados na barra, como uma obra de arte geométrica. Não sei quem criou isso, só sei que biologia da conservação é matemática, é cálculo, é estudo. Chocolate fino também, é o que vi e senti, até a embalagem é de uma delicadeza artística elaborada.
Um fruto amazônico e outro catingueiro, um fruto doce e outro ácido, um fruto da abundância de água e outro da escassez, um fruto de casca dura e outro de pele tenra, um fruto de sombra e outro de sol, e nesta dicotomia de frutos protegidos por povos ancestrais que se unem duas paixões que carrego em minha alma. Cacau e Umbu. Um muito obrigada às mãos talentosas que fez este chocolate que parece ser uma missão de vida como diz o nome da marca que acabei de conhecer.
Sobre os dentes? Ainda bem que surgiu a tal da faceta de resina e agora posso morder umbu de novo no pé, paixões preservadas pelo ecossistema e pela minha dentista.
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